segunda-feira, 18 de maio de 2009

Polígrafo referente às duas primeiras aulas



A Arqueologia da Cultura Ocidental




Voltaire Schilling



Introdução


O filósofo Michel Foucault, historiador das idéias, num ensaio famoso, procurando as raízes primeiras do conhecimento moderno, praticou um exercício que denominou de L'archeologie du savoir, a ‘arqueologia do saber’, identificando no Renascimento as fontes originais das ciências sociais como hoje elas são conhecidas. Se algum outro se atrevesse a uma escavação ainda mais profunda e ampla, buscando os umbrais da cultura ocidental, o que ele encontraria? Em qual arquivo arcaico estariam as provas e as pistas mais remotas das facetas desta cultura que ganhou o mundo?



As grandes etapas culturais


Em primeiro lugar, antes da procura pelas pistas mais remotas, é interessante observar que a cultura ocidental, ao longo dos seus três mil anos de existência, passou por três grandes fases, ou Períodos, muito distintos entre si: o do Paganismo, o do Cristianismo e o do Iluminismo, sob o qual vivemos no presente.


O Paganismo: a) Tem, em sua primeira etapa, partindo-se do ano mil a.C., como ponto irradiador, a cidade de Atenas (desde o período Clássico), situada na Grécia continental e, depois, a cidade de Alexandria (até ser submetida a Roma no século I a.C.), localizada na margem mediterrânea do Egito. b) A sua segunda fase concentra-se na cidade de Roma, tornada império, até a conversão de Constantino, em 313.


O Cristianismo: a) Em sua primeira fase, dividiu-se entre Roma e Constantinopla, tendo ambas a cidade de Jerusalém como força simbólica inspiradora. O livro guia torna-se a Bíblia.

b) Com a divisão da Igreja Cristã (1054), em Igreja Ortodoxa (ou Bizantina) e Igreja Católica, Roma assume a função absoluta de capital da cristandade ocidental, enquanto Bizâncio e, depois Moscou, assumem a representação oriental do cristianismo.

c) A partir do século XIV, a cidade de Florença ocupa o lugar de Roma como centro irradiador da cultura ocidental. Na Europa do norte este papel passa a ser exercido por Paris.


O Iluminismo: a) Superando a longa fase do cristianismo, o Movimento Iluminista, no século XVIII, tem seu epicentro concentrado entre Paris e Londres, capitais que passam a liderar o desenvolvimento científico e a laicização da sociedade em geral, emancipando a cultura ocidental da influência das igrejas cristãs, acelerada desde a Revolução Francesa de 1789. b) Com o declínio da Europa, ao longo do século XX, o centro dinâmico, a partir de 1945, torna-se os Estados Unidos da América.



A Gênese do Ocidente


Nesta busca pela gênese da cultura ocidental, certamente poucos discordariam de que sua origem mais remota encontra-se na bacia do Mar Egeu, área situada no Mediterrâneo Oriental, entre a Europa Oriental e a Ásia Menor. Por igual, não rejeitariam a conclusão de que os três principais elementos constitutivos dela encontram-se na Grécia Antiga.

Numa ordem de importância, o primeiro destes elementos certamente foi o surgimento da escrita, no século IX a.C., com a adoção do alfabeto grego, derivado do fenício, ao qual os seguidores de Zeus apenas tiveram o trabalho de acrescentar as vogais (‘alfa’, ‘épsilon’, ‘iota’. ‘ômicron’, ‘upsilon’, num total de 27 letras).

O segundo destes elementos pode ser atribuído à arquitetura cretense, mais precisamente ao Palácio de Cnossos, do mitológico rei Minos de Creta, erguido ao redor do século XIX a.C., que teria servido como parâmetro para a maioria das construções palacianas feitas pelos gregos ao longo da sua história. As escavações em Micenas mostraram que o reino de Agamemnon seguia as mesmas diretrizes estilísticas do fabuloso Minos, não se duvidando que a influência cretense tenha se estendido por grande parte da Grécia continental. Creta também foi a principal usina dos mitos gregos, a começar pela lenda do rei Minos (filho de Zeus e de Europa, princesa fenícia raptada pelo deus grego), que engendrou o Minotauro e a tauromaquia, que séculos depois iria ressurgir nas touradas da península Ibérica. A façanha do fortíssimo Teseu, príncipe de Atenas, percorrendo o labirinto palaciano de Cnossos com o auxílio do fio de Ariadne para matar o feroz touro, já foi indicativa de que a cultura da Grécia continental começava a superar à da Grécia insular.


O terceiro em importância certamente foi o legado de Homero com seus dois enormes poemas épicos, com quase 28 mil versos, a ‘Ilíada’ e a ‘Odisseia’, que teriam sido escritos ao redor do século VIII a.C.. Inspirando-se nestas duas obras é que a maioria dos poetas ocidentais, direta ou indiretamente, formularam seus versos. Uma linhagem que vem desde Virgílio, passando por Dante, Tasso e Camões, chegando, quase três mil anos depois, ao Ulisses de James Joyce e ao ‘Omeros’ de Derek Walcott, poema publicado em 1990, no qual ressurgem, em pleno mar do Caribe, os personagens de Aquiles, Heitor, Filotetes e Helena.



Ramificações


Da escrita grega original, a arcado-cipriota, subdividida entre o alfabeto calcídico, ou ocidental, e o alfabeto jônico, ou oriental, originaram-se duas outras escritas que fariam história: o latim e o russo. O alfabeto latino certamente derivou do grego ocidental por força da presença das colônias helênicas que se espalharam pelo sul da Itália (Magna Grécia) e pela ilha da Sicília, enquanto o russo derivou da ação do monge bizantino Cirilo, o introdutor do cristianismo na Rússia, no século IX (alfabeto, com 43 letras, que se difundiu para os povos como o mongol, o cazaque, o uzbeque, o quirguiz e o tadjique, entre outros da Europa Oriental, do Cáucaso e da Sibéria).

O alfabeto latino, por sua vez, graças às conquistas do Império Romano, terminou sendo adotado tanto pelas nações celtas como pelos povos germânicos da Europa central que conheceram a ocupação direta das legiões, expandindo-se, daí, para a Inglaterra e Escandinávia. Como efeito, direto disto surgiram então os idiomas neolatinos (português, espanhol, italiano, francês, romeno e catalão).



O sucesso do alfabeto grego e a facilidade do seu aprendizado e difusão deveram-se ao fato de ele derivar dos interesses comerciais (o fenício, seu criador, era o mais renomado negociante da Antiguidade) e não da casta sacerdotal ou da burocracia real, como foi o caso dos hieróglifos egípcios ou das antigas escritas cuneiformes dos sumérios. A simplificação e a funcionalidade dele impulsionaram a alfabetização de uma parte considerável da população grega, que muito fez pela ilustração geral da população da Hélade.

O Palácio de Cnossos, com algumas alterações, prestou-se como arquétipo dos edifícios públicos da Grécia Antiga, todos sustentados por colunas, como a morada de Minos. O tipo de pintura mural interna por igual se viu repetida nos demais palácios e mesmo nos templos consagrados aos deuses olímpicos e outros edifícios públicos de relevo.



A Geografia da Cultura Ocidental


Partindo-se por primeiro da Bacia do Mar Egeu, dividido em sua formação insular (Creta) e outra continental (a Ática e o Peloponeso), gerando a cultura grega (subdividida em fase heróica, arcaica, clássica e helenística) – que se tornou a maior matriz inspiradora – alcança-se, em seguida, a Itália onde se desenvolveu a cultura romana (que herdou, entre outras coisas, o alfabeto, a mitologia, a filosofia e a estética grega).



A Bacia do Mar Egeu


Num outro momento, devido à expansão do Império Romano por largas partes da Europa celta e germânica, entre os séculos II a.C. e IV, alargou-se o círculo da cultura ocidental, englobando as regiões da Ibéria (Espanha-Portugal), da Gália (França), da Germânia (Alemanha Ocidental) e da Bretanha (Inglaterra).

Com as invasões germânicas dos séculos IV-VI, povos bárbaros, que viviam afastados da influência ocidental (Alamanos, Bávaros, Godos, Suevos, Vândalos, Burgúndios, Francos, Lombardos, Anglo-Saxões, Teutões) se converteram aos valores do Ocidente (o uso do latim ou do alfabeto latino e a adesão à religião cristã).



Expansão pelo ultramar


Esta situação se estendeu por mil anos até que se deram os Grandes Descobrimentos, a partir do final do século XV, ocasião em que a cultura ocidental (principalmente a ibérica e a anglo-saxã) lançou raízes no Novo Mundo, agregando a si as Américas numa primeira etapa da Globalização.

O passo seguinte desta propagação ocorreu na época do Imperialismo Colonialista, quando extensas regiões da África, da Ásia e da Oceania caíram sob o controle de metrópoles ocidentais (Grã-Bretanha, França, Bélgica, Holanda, Itália). Métodos administrativos e organização do estado se somaram à adesão dos nativos aos idiomas ocidentais. A esta altura, a cultura ocidental se fazia presente nos três grandes países da Ásia (Índia, China e Japão). Com as duas Guerras Mundiais, a de 1914-18 e a de 1939-45, que abalaram profundamente a hegemonia europeia sobre o planeta, os Estados Unidos e a Rússia (semiconvertida ao ideário ocidental desde Pedro o Grande), assumiram a liderança mundial, ofuscando gradativamente a importância da Europa Ocidental.

Na etapa em que se vive presentemente, o processo de Globalização se intensificou com a ampliação do capitalismo ocidental, que lançou uma rede ao redor do mundo, colhendo em suas mãos todos os oceanos e mares, assim como as principais terras habitáveis do planeta (tendo o dólar e o euro como seu lastro), seguida da conversão aos regimes políticos identificados com o Iluminismo (republicanos e democráticos), sob a hegemonia mundial do idioma inglês. Avançando neste processo de integração geral, cada vez mais acelerada, da humanidade é bem possível que algum dia alcancemos a ‘unidade das civilizações’. O que permitirá com que as 21 civilizações classificadas por A.Toynbee no seu famoso Estudo (compostas hoje por 192 estados, 5 grandes religiões e 6.700 línguas), se fundam definitivamente numa só em algum momento do porvir da história.



Bibliografia


ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Lisboa. Editorial Presença, 1969. 14 v.

CARPEAUX, Otto M. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985-87, 6 v.

CHEVALLIER, Jean-Jacques. História do Pensamento Político. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1983. 5 v.

CROUZET, Maurice. História Geral das Civilizações. São Paulo: Difel, 1955-58, 7 v.

DUBY, George. Laclotte, Michel. História Artística da Europa: a Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, 2 v.

GRIMAL, Pierre. A Civilização Romana. Lisboa: Edições 70, 1988.

HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

JAEGER, Werner. Paidéia. São Paulo. Martins Fontes, 2001.

TOYNBEE, Arnold J. Estudio de la Historia. Buenos Aires: Emece Editores, 1951. 8 v.

TURNER, Ralph. Las Grandes Culturas de la Humanidad. México. F.C.E., 1992.

Nenhum comentário:

Postar um comentário